Por Salim Dada
Traduzido por Leonardo Alves e Caroline Schirmer Götz
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Sobre o autor
Salim é músico, compositor, maestro e especialista em políticas culturais. Ele possui ampla experiência no monitoramento de políticas relacionadas às indústrias culturais e criativas. Desde 2018, tem atuado intensamente nessa área, especialmente em seu papel como Presidente do Conselho Nacional de Artes e Literatura da Argélia.
Em 2020, Salim ocupou o cargo de Secretário de Estado para a Produção Cultural, trabalhando na elaboração do primeiro projeto de lei para proteger a situação socioprofissional dos artistas na Argélia, bem como no projeto da primeira escola de artes do país. Como especialista na Convenção de 2005, colaborou com a UNESCO em diversos projetos, atuando como ponto focal, especialista nacional e redator do primeiro relatório periódico quadrienal da Argélia (2019-2020). Também auxiliou a Mauritânia, o Catar e Omã como especialista internacional no mesmo processo.
Salim foi avaliador regional do Programa UNESCO-Aschberg na região MENA antes de integrar o Banco de Especialistas da UE-UNESCO em 2023. Ele possui doutorado em medicina geral pela Faculdade de Argel, além de um mestrado de pesquisa em música e musicologia pela Universidade Sorbonne, bem como diversas certificações americanas em gestão de projetos.

O Futuro da Cultura na Era Digital [1]

Desde que o ser humano começou a criar arte, contar histórias e representar o mundo ao seu redor, a criatividade tem sido uma expressão de si mesmo e da sua identidade, além de um esforço para compreender a existência e interagir com ela. A música nunca foi apenas melodias, nem a literatura apenas palavras, nem a pintura apenas traços, nem a dança apenas movimentos. Pelo contrário, essas expressões humanas, em todas as suas formas, foram e continuam sendo uma extensão da experiência humana na busca por significado, no questionamento da natureza do mundo e na expressão de questões fundamentais e inúmeras perguntas existenciais.
Quando o pintor francês Edgar Degas afirmou no século XIX que “a arte não é o que você vê, mas o que você faz os outros verem”, ele destacou a experiência do outro na imaginação e na percepção da essência da obra de arte. Essa ideia se assemelha à afirmação do violoncelista japonês [sic] [2] contemporâneo Yo-Yo Ma: “Nossa força cultural sempre derivou da diversidade de nossa compreensão e da diversidade de nossas experiências”, o que reforça que a experiência artística e cultural humana vai além dos aparatos com os quais a obra é criada, mergulhando em suas conotações, símbolos, na memória coletiva e na carga emocional que essa experiência carrega.
Mas o que acontece quando algoritmos e inteligência artificial entram no cenário cultural? E como podemos preservar a riqueza das expressões culturais em um mundo moldado por gigantes da tecnologia e sistemas inteligentes que aprendem, simulam e criam?
A inteligência artificial deve ser uma ferramenta nas mãos do artista, e não sua substituta
Essa questão deixou de ser apenas uma suposição filosófica e se tornou uma realidade concreta, levando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) a criar um grupo de reflexão internacional para estudar a relação entre tecnologia e cultura na era digital a fim de analisar os impactos crescentes da inteligência artificial e das plataformas digitais na diversidade cultural e fornecer insights e recomendações que protejam a criatividade humana de se tornar um caminho unidirecional imposto por algoritmos.
Como membro do Grupo de Reflexão da UNESCO sobre a Diversidade de Expressões Culturais no Ambiente Digital, trabalhei com essa equipe internacional de 18 especialistas para examinar desafios e oportunidades, propondo soluções práticas para garantir que a transformação digital seja uma possibilidade de fortalecer a diversidade cultural, e não de apagá-la.
Ao longo de um ano inteiro, e por meio de duas reuniões principais na Cidade de Quebec, Canadá (28 a 30 de maio de 2024) e em Paris, França (6 a 8 de novembro de 2024), chegamos a 11 recomendações principais, que foram publicadas em dezembro de 2024 e finalmente apresentadas ao Comitê Intergovernamental da Convenção de 2005 da UNESCO, em Paris, no dia 13 de fevereiro de 2025.
Nossas discussões não foram apenas um exercício acadêmico, mas um confronto direto com uma nova realidade na qual a arte, o pensamento, a música e a linguagem já não estão imunes à influência da inteligência artificial. Essa tecnologia, que nasceu como uma ferramenta auxiliar, agora é capaz de gerar pinturas, compor músicas, escrever romances, traduzir livros, produzir curtas-metragens e até imitar vozes humanas.
Essas recomendações não visam apenas regular a relação entre tecnologia e cultura, mas também garantir um futuro digital mais justo e diverso, que respeite os direitos dos criadores e das diferentes comunidades culturais. Como podemos assegurar que esses recursos permaneçam a serviço da criatividade humana, em vez de substituí-la? E como isso pode ser alcançado?
Mas antes de falarmos sobre essas recomendações, vamos fazer uma pausa para refletir sobre os desafios que a era digital impõe à cultura nos dias de hoje.
Entre o domínio dos algoritmos e o desaparecimento da diversidade
Se olharmos para a história, veremos que a diversidade cultural nunca foi produto de uma autoridade centralizada, mas sim resultado da interação espontânea entre os povos, do contato entre culturas, da troca de ideias e das experiências compartilhadas. No entanto, quando a cultura se torna subordinada a algoritmos de promoção controlados por empresas privadas, corremos o risco de que a criatividade se transforme em um produto estereotipado, programado de acordo com padrões de consumo, em vez de ser uma experiência humana autêntica…
Numa era dominada pelas grandes plataformas digitais, como YouTube, Netflix e Spotify, o conteúdo cultural já não circula livremente entre as pessoas, como acontecia em mercados, bibliotecas e teatros, nem chega ao público de maneira aleatória ou natural, como no passado. Em vez disso, hoje são os algoritmos que determinam o que vemos, ouvimos e lemos, analisando o comportamento dos usuários e sugerindo conteúdos que correspondem aos seus interesses anteriores, direcionando assim suas escolhas com base em padrões de consumo preexistentes. Esse fenômeno cria “bolhas culturais”, aprisionando-nos em círculos limitados de interesse, fazendo desaparecer vozes menos populares ou com menor financiamento, e colocando em risco a diversidade linguística e cultural, que pode acabar isolada ou extinta.
Desaparecimento de línguas e culturas não dominantes
No espaço digital, grandes línguas globais, como o inglês, dominam, reduzindo as oportunidades de disseminação de conteúdos culturais em outros idiomas. Na ausência de estratégias para apoiar o multilinguismo, isso pode levar à extinção digital de algumas línguas e culturas. Segundo a Statista [3] (2025), o inglês representa 49,4% do conteúdo global na internet, seguido pelo espanhol (6%), alemão (5,6%) e japonês (5%). O árabe ocupa a 22ª posição, com apenas 0,5%, apesar de ser a oitava língua mais falada do mundo, com 3,3% da população global (Statista, 2025).
O que preocupa, então, é a clara disparidade entre a realidade vivida e o ambiente digital em termos de práticas linguísticas, colocando as línguas menos faladas em risco de desaparecimento digital à medida que os algoritmos as negligenciam em favor dos idiomas globalmente dominantes. Assim, deparamo-nos com uma questão fundamental: o ambiente digital pode ser um mecanismo para promover a diversidade cultural ou se tornará um meio de apagá-la e estereotipá-la?
Criatividade Humana vs. Inteligência Artificial
Quando a IA começou a simular obras de arte, era vista como uma ferramenta para apoiar artistas e ajudá-los a alcançar novas visões. Hoje, a IA pode compor música, escrever textos, criar pinturas e até produzir curtas-metragens. Mas, à medida que esses sistemas evoluem, a questão começou a se tornar mais complexa: a arte ainda é arte quando produzida por máquinas? Artistas e criadores se tornarão meros observadores enquanto as máquinas fazem o trabalho? Ou a IA continuará sendo um instrumento auxiliar que aprimora a criatividade humana, em vez de substituí-la?
Há uma diferença fundamental entre a criatividade humana e a produção algorítmica. A criatividade humana está ligada à experiência subjetiva, sentimentos, história pessoal e coletiva, sofrimento, esperança e questões existenciais. Enquanto a inteligência artificial se baseia na análise e reprodução de padrões, sem vivenciar um momento de inspiração, sofrer as dúvidas do criador ou passar por uma experiência emocional que deixe um impacto em sua obra. Isso não significa que a inteligência artificial deva ser excluída do cenário cultural, mas sim que deve ser uma ferramenta nas mãos do artista, não um substituto para ele. É aí que entram as políticas culturais, que devem garantir que a tecnologia não se torne uma concorrente desleal para os criadores e que seus direitos sejam preservados diante de uma era em que as máquinas controlam a produção cultural.
Como proteger a diversidade cultural no mundo digital?
Por meio do nosso trabalho no grupo de reflexão, desenvolvemos ideias práticas que podem tornar o ambiente digital mais equitativo e diverso em vez de um espaço dominado por algoritmos que reconhecem apenas o conteúdo mais visto e rentável.
Uma das recomendações mais importantes foi a necessidade de “adicionar um novo protocolo à Convenção da UNESCO de 2005 sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais” (Recomendação 1), que obrigaria as plataformas digitais a respeitar a diversidade linguística e cultural, e fornecer aos países os recursos necessários para proteger a diversidade cultural em um espaço controlado por algumas grandes empresas de tecnologia. Também recomendamos a criação de uma “plataforma internacional para monitoramento do desenvolvimento da diversidade cultural” (Recomendação 2), que contribuiria para o fortalecimento do processo de coleta e análise de dados sobre quanto o conteúdo cultural nacional e local aparece nas plataformas digitais, as línguas usadas no conteúdo digital, e quanto o público interage com ele a fim de identificar desafios e oportunidades, além de verificar se os algoritmos realmente promovem diversidade ou sugerem um conteúdo uniforme.
Ainda assim, o problema não é apenas legal ou técnico, mas também de conscientização social. Por isso, focamos na necessidade de “incluir a cultura digital nos currículos escolares, especialmente nos currículos de artes” (Recomendação 6), para que os indivíduos se tornem capazes de entender e criticar como os algoritmos funcionam, e não sejam apenas consumidores passivos, mas participantes ativos na formação da cultura digital. Também discutimos a importância de apoiar artistas e criadores a enfrentarem essa transformação por meio de “programas de capacitação em tecnologias digitais” (Recomendação 8), protegendo os direitos de propriedade intelectual na era da inteligência artificial e garantindo que a criatividade humana tenha um espaço seguro em um mundo que acelera rumo à automação. Por outro lado, recomendamos incentivar “a criação de Cátedras da UNESCO especializadas em cultura digital” (Recomendação 9) para garantir a continuidade da pesquisa científica nesse campo e o desenvolvimento de estudos aprofundados sobre o impacto da inteligência artificial nas artes e na cultura.
Para que a tecnologia não se torne uma concorrente desleal para os criadores
As Recomendações 5 e 7 estipulam “o apoio aos esforços de defesa para promover a diversidade cultural no ambiente digital” como forma de confrontar o domínio das grandes empresas de tecnologia, fortalecendo o papel da sociedade civil e dos atores culturais na influência e contribuição para a formulação de políticas de governança digital. O mesmo se aplica a “desenvolver planos nacionais para aprimorar as habilidades digitais para o setor cultural”, em que recomendamos a necessidade de: capacitar artistas sobre mecanismos de publicação e distribuição digital, oferecer cursos sobre proteção de propriedade intelectual à luz da inteligência artificial e desenvolver programas de apoio a artistas em países em desenvolvimento para que possam se beneficiar da transformação digital.
Finalmente, nenhuma estratégia pode ter sucesso sem cooperação global, razão pela qual defendemos a “criação de um fórum internacional permanente para o diálogo sobre cultura digital” (Recomendação 4), com o objetivo de discutir os desafios da tecnologia e seu impacto na cultura, e de alcançar acordos internacionais que garantam a proteção da diversidade cultural, além de estabelecer uma “rede global de especialistas em cultura digital” (Recomendação 10) que permita fornecer apoio aos países na elaboração de políticas culturais digitais e promover o intercâmbio de conhecimento e experiência entre pesquisadores, artistas e autoridades para desenvolver soluções adequadas aos desafios locais de cada sociedade.
Para onde está indo o futuro da cultura?
A verdadeira questão hoje não é se os algoritmos e a IA irão influenciar a cultura – porque eles já influenciam –, mas como podemos fazer com que essa influência seja positiva? Como a tecnologia pode continuar a aprimorar a criatividade humana, sem substituí-la? Como preservar a diversidade cultural em um espaço digital onde todos são incentivados a consumir os mesmos tipos de conteúdo?
A resposta certamente não é rejeitar a tecnologia, mas organizá-la, entendê-la e usá-la de forma consciente e responsável. O maior desafio que enfrentamos hoje não é apenas técnico, mas também civilizacional e humano: queremos viver em um mundo digital que reflita nossa verdadeira diversidade ou em um mundo criado para nós por algoritmos, segundo equações de probabilidades monótonas?
A tecnologia não é inimiga da cultura; se usada corretamente, pode ser sua maior aliada. Mas se deixarmos apenas para as plataformas digitais e os gigantes corporativos, podemos ver um declínio perigoso na diversidade cultural à medida que os algoritmos impõem um único modelo do que é “bem-sucedido” ou “adequado”.
As recomendações que apresentamos no grupo de reflexão não são apenas propostas teóricas, mas passos práticos que podem formar um roteiro para um futuro digital mais diverso e justo. Elas traçam um plano abrangente para garantir a sustentabilidade da diversidade cultural no ambiente digital por meio de uma mistura equilibrada de inovação, proteção legal e apoio aos atores culturais a fim de garantir um futuro digital mais justo, inclusivo e sustentável para o cenário cultural, o qual continua sob constantes mudanças.
Aqui reside a responsabilidade da UNESCO, à qual recomendamos “fortalecer seu papel nas questões de inteligência artificial e no ambiente digital no campo da cultura” (Recomendação 11), aprimorando a coordenação interna entre seus diversos departamentos (Cultura com seus diversos acordos, Educação e Ciência) e participando ativamente das discussões globais para garantir que a cultura permaneça no centro das futuras políticas digitais.
A questão que se coloca agora é: seremos capazes de alcançar esse equilíbrio? Ou vamos deixar os senhores da tecnologia decidirem o destino de nossas culturas e identidades? A resposta depende de todos nós: indivíduos, artistas, organizações civis e internacionais, e autoridades políticas.
[1] Texto original, em árabe, disponível em: https://www.alaraby.co.uk/culture/مستقبل-الثقافة-في-العصر-الرقمي.
[2] N.T.: Apesar de ter produzido um álbum de melodias japonesas em 1985, Yo-Yo Ma é de descendência chinesa.
[3] N.T.: O autor utiliza dados da página: https://www.statista.com/statistics/262946/most-common-languages-on-the-internet/. No entanto, destacamos que informações mais recentes do Observatório da Diversidade Linguística e Cultural na Internet (OBDILCI) já indicam uma participação crescente de outras línguas, refletindo o avanço do multilinguismo no ambiente digital. Uma entrevista com Daniel Pimienta, responsável pelo OBDILCI, está disponível no site do GT Geopolíticas do Multilinguismo: https://geomultling.ufsc.br/gt-geopoliticas-do-multilinguismo-entrevista-daniel-pimienta/.

Leonardo Alves
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina na linha de pesquisa de Linguagem, Política e Sociedade. Graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Santa Cruz do Sul.

Caroline Schirmer Götz
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na linha de pesquisa de Linguagem, Política e Sociedade. Professora licenciada em Língua Portuguesa e Literaturas pela mesma instituição, leciona aulas de PLE para falantes de árabe e anglófonos.