Políticas Linguísticas e demandas sociais

Por Kerolyn Sarate

Entender que a ciência acompanha os fluxos sociais é fácil ao pensarmos que emergências sociais despertam novos interesses de pesquisa e também criam abordagens distintas. Cada época traz suas questões e indagações, ocorrendo, em grande parte, de forma concomitante à sociedade. É claro que muitos campos do conhecimento científico apresentam uma relação mais próxima com o contexto social, como a linguística. Embora ainda exista uma vertente da linguística voltada para si, desconectada da realidade e que ignora questões sociais, isso foi mudando ao longo do tempo. Hoje, várias áreas dos estudos da linguagem se dedicam à relação entre língua e sociedade, e uma dessas áreas é a Política Linguística, foco deste texto.

De acordo com o pesquisador e linguista Louis-Jean Calvet (2007), o campo da Política Linguística surge com uma demanda social: a descolonização de países africanos e asiáticos. No início, as reflexões sobre língua e nacionalismo nas ex-colônias moldaram a área. No entanto, não se engane, a política linguística aborda temas sensíveis – como identidade, cultura, economia e desenvolvimento – que interessam a todos os países, incluindo o Brasil.

Para compreender a Política Linguística, é importante reconhecer que ela não acontece dentro da universidade, embora seja um campo de estudo da Linguística. Ela se desenvolve no cotidiano da sociedade, impulsionada por demandas sociais. Seus principais agentes não são os pesquisadores, mas as pessoas comuns, que vivem as decisões sobre as línguas em seu dia a dia. Em essência, Política Linguística trata disso: das decisões sobre as línguas, não apenas as grandes decisões, mas qualquer decisão pode se configurar uma política linguística, ainda que seja restrita a um grupo específico. É claro que decisões tomadas em pequenos grupos sem respaldo jurídico tem muitas vezes menos força se comparado a outras que estão amparadas pela lei.

Participar ativamente de uma política linguística é algo ao alcance de qualquer cidadão, e não apenas da universidade. Na verdade, os pesquisadores refletem, propõem e especulam, mas dificilmente implementam uma política linguística. Quer um exemplo? A primeira língua de imigração cooficializada no Brasil foi o Pomerano, em 2007. Com o tempo, isso gerou um efeito dominó e outros municípios passaram a cooficializar línguas de imigração, valorizando o patrimônio cultural e linguístico com suporte legal. Assim, muitos municípios que receberam grande fluxo migratório no passado têm hoje o português como língua oficial e uma segunda língua cooficializada, respaldada por legislação. Esses processos são essenciais para que uma situação linguística insatisfatória se transforme em uma condição desejada. Muitas línguas de imigração só alcançaram reconhecimento legal devido às demandas sociais dos descendentes dos imigrantes. Para que qualquer política linguística seja eficaz, é fundamental que as soluções estejam alinhadas com o sentimento linguístico dos falantes, caso contrário, podem surgir conflitos.

Sem dúvida, o apoio jurídico é fundamental para implementar uma política linguística, mas isso não garante o sucesso. As línguas indígenas, por exemplo, estão reconhecidas na Constituição Brasileira de 1988. No entanto, muitas delas possuem poucos falantes, escassos estudos acadêmicos e pouco investimento governamental para ampliar suas funções. Aliás, para expandir as funções de uma língua, é necessário antes equipá-la com escrita, léxico e padronização, de forma que ela possa estar presente na televisão, em publicações, na saúde, na internet, entre outros.

A Política Linguística pode parecer algo distante, mas, na verdade, permeia a nossa vida em sociedade. O fato de o português ser a única língua oficial no Brasil é resultado de uma política linguística que iniciou no século XVIII com a proibição das línguas faladas à época e oficializando somente o português. O gradual desaparecimento de muitas línguas indígenas, as placas públicas, a publicidade e as mídias predominantemente em português – tudo isso também reflete decisões de política linguística, promovendo majoritariamente o português. O GT Geopolíticas do Multilinguismo (UFSC) elaborou um levantamento prévio das línguas presentes no Brasil para o Atlas Unesco das Línguas do Mundo, com base em pesquisas de alguns autores. Foram identificadas mais de 300 línguas em um país que geralmente se vê como monolíngue – curioso, não? A invisibilidade das línguas também é uma questão de política linguística.

No início das políticas linguísticas enquanto campo teórico, a agenda se concentrava nos territórios físicos. Hoje, com a globalização, a importância do espaço geográfico ainda é relevante, mas o território digital também tem atraído a atenção dos pesquisadores. O espaço das línguas na mídia digital influenciará sua preservação no futuro. Estão todas as línguas brasileiras acessíveis em meios digitais? Com certeza não; as línguas indígenas, em sua esmagadora maioria, não estão nos tradutores online e não têm conteúdo digital disponível em plataformas como Instagram ou TikTok. O Brasil ainda possui inúmeras línguas de imigração que, apesar de algumas serem cooficiais, permanecem limitadas territorialmente e sem acesso na internet, o que restringe seu uso para as próximas gerações. Em um mundo cada vez mais conectado, o Brasil não deveria se preocupar em preservar essas línguas para além do território geográfico, já que fazem parte de sua cultura e história?

É claro que o processo não é tão simples quanto parece. São necessários investimentos para que as línguas assumam novos espaços. Se a cooficialização de línguas de imigração em nível estadual e municipal surgiu a partir de movimentos feitos pelos descendentes de imigrantes que buscavam preservar suas línguas, não seria hora de reivindicar investimento para que essas línguas se fortaleçam na internet? Promover uma língua apenas no espaço geográfico ainda é suficiente para preservá-la? Parece que não, mas a política linguística só se move por demandas sociais.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

CALVET, L.-J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Editorial, IPOL, 2007.

MATOS, M. P. S. Repositório Brasileiro de Legislações Linguísticas (RBLL). IPOL, 2023.

Kerolyn Sarate

Graduada em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa, com especialização em Língua Portuguesa para estrangeiros, mestra em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLing/UFSC) e atualmente é doutoranda pelo mesmo programa.

Gostou de conteúdo? Compartilhe!

Outras publicações

Acompanhe nossos outros canais

GeoMultLing

A GeoMultLing é um grupo de trabalho dedicado a promover e disseminar pesquisas nos sete eixos da Cátedra UNESCO em Políticas Linguísticas para o Multilinguismo, explorando áreas cruciais como educação multilíngue, direitos linguísticos, multilinguismo no ciberespaço, políticas linguísticas e geopolítica linguística.

Direitos Autorais @ 2024 – Universidade Federal de Santa Catarina