Por Kaya Araújo Pereira
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“Coração americano
Acordei de um sonho estranho
Um gosto vidro e corte
Um sabor de chocolate […]”
(“San Vicente”, de F. Brant/M. Nascimento)
O objetivo deste artigo é propor uma breve reflexão sobre a relação entre a língua espanhola e a língua portuguesa, estabelecida por compositores de canções latino-americanas engajadas, especialmente na década de 1960 e de 1970. A hipótese é a de que a relação entre as línguas citadas se alia ao projeto de integração econômica regional, iniciado em 1948 com a fundação da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), enquanto um eixo linguístico-cultural de tal integração.
O artigo está organizado em três seções: 1. discorre sobre a primeira etapa de integração econômica regional latino-americana, caracterizada pelo pensamento cepalino, entre outras correntes de pensamento econômico; 2. apresenta as principais características do movimento artístico da canção engajada latino-americana; 3. cataloga os modos de relação entre a língua portuguesa e a língua espanhola, no âmbito de tal movimento artístico, comentando essa relação entre línguas à luz do debate sobre multilinguismo e cultura.
Um panorama da integração econômica latino-americana
A partir de 1948, o pensamento econômico latino-americano foi marcado por pesquisadores ligados à CEPAL. O economista brasileiro Ricardo Bielschowsky (2000) destacaria duas reflexões centrais da Cepal no período. Primeiro, compreendia-se que o processo de industrialização latino-americano era problemático por termos herdado uma base econômica especializada em poucas atividades de exportação, com baixo grau de diversificação. Segundo, compreendia-se que a baixa produtividade de todos os setores, exceto o de exportação, se aliava a um amplo excedente de mão de obra e uma baixa produtividade per capita, limitando a acumulação de capital e o crescimento econômico. Enfim, o pensamento cepalino compreendia que, mesmo com o avanço da industrialização, a insuficiência de poupança e de divisas continuaria, devido aos problemas estruturais do subdesenvolvimento. Uma característica que era comum a todos os países da América Latina e uma característica que será cantada por diversos artistas, como será visto adiante.
Ressalta-se que, já no início da década de 1960, outras reflexões seriam elaboradas, por exemplo, por uma Teoria da Dependência, segundo a qual havia uma dimensão propriamente política, e não somente econômica, que influenciava o (sub-)desenvolvimento da América Latina. Além disso, o economista Ricardo Bielschowsky (2000) também explica que a abertura brasileira com a América Latina era influenciada no período pelo nascimento de duas instituições: a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (1960) e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (1964).
O golpe militar de 1964 inicia um período marcado por percepções contraditórias sobre a integração regional e por uma série de obstáculos concretos para tal envolvimento. Como explicam os historiadores Amado Cervo e Clodoaldo Bueno (2011), as relações comerciais do Brasil com a América Latina foram amarradas por uma série de pacotes econômicos. Nesse ínterim, uma das dificuldades era quanto ao apoio dos Estados Unidos. Por exemplo, em 1967, foi aprovada a criação do Mercado Comum Latino-Americano na reunião dos chefes de estado da Organização dos Estados Americanos, no âmbito da ALALC. Contudo, a nova política externa norte-americana implementada a partir 1971 pelo governo de Richard Nixon provocou um recuo da América Latina, fazendo com que o Brasil obstasse à criação do Mercado Comum e se voltasse à expansão da exportação de manufaturados.
Enfim, os sentidos de uma integração latino-americana também se firmaram a partir das práticas repressivas ditatoriais. Conforme o site da Comissão Nacional da Verdade (s.d., online), a Operação Condor foi formalizada em reunião secreta realizada em Santiago do Chile em 1975. A operação propunha uma aliança entre as ditaduras instaladas nos países do Cone Sul na década de 1970 — Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai — em prol da vigilância, do sequestro e da tortura a seus opositores políticos. Entre os opositores, figuravam os artistas responsáveis pela canção socialmente engajada, sobre os quais falaremos agora.
O imperialismo, as ditaduras e a canção engajada
Em síntese, o projeto de integração regional latino-americana, por volta da década de 1960, tinha como obstáculos os problemas do subdesenvolvimento compartilhados pelos países, herdados do período colonial, e a marginalização dos países da periferia do capitalismo aos interesses do centro. Além disso, as ditaduras militares asseguraram os interesses dos países ricos na região e fomentaram a perseguição a militantes políticos, entre eles, os compositores de canção popular.
Havia resistência. Surgem formas de canção politicamente engajadas, fazendo circular sentidos sobre a luta socialista e a Revolução Cubana de 1959, inspiradas em uma vertente folclórica da canção popular, como se ilustra, por exemplo, com a obra de Violeta Parra (1917-1967). Como explica a crítica literária Walnice Nogueira Galvão (1968, online), esse projeto de canção popular engajada se caracterizava por um compromisso em “dizer a verdade”, por informar, por convocar à participação.
No Brasil, a canção engajada foi representada por artistas como Carlos Lyra (1933-2023), Geraldo Vandré, Chico Buarque, Caetano Veloso, entre outros. Conforme Walnice Galvão (1968, online):
Este projeto tem duas faces. No plano musical, implica numa volta às velhas formas da canção urbana (sambão, sambinha, marcha, marcha-rancho, modinha, cantiga de roda, ciranda, frevo etc.) e da canção rural (moda-de-viola, samba de roda, desafio etc.). No plano literário, impõe um compromisso de interpretação do mundo que nos cerca, particularmente em suas concreções mais próximas, brasileiras. Basta arrolar a galeria de personagens: o boiadeiro, o cangaceiro, o marinheiro, o retirante, o violeiro, o menino pobre da cidade, o homem do campo, o nordestino que vem trabalhar no Sul, o chofer de caminhão, o homem da rua, o sambista, o operário etc.
Na América Latina, estes movimentos artísticos são participantes do projeto: o nuevo cancionero argentino, a trova cubana, a canción protesta paraguaia, a nueva canción chilena. Um dos marcos da canção engajada em prol de uma unidade latino-americana foi o álbum El sueño americano (1968), do cantor Patricio Manns. Poderíamos mencionar também o I Encuentro de la Canción Protesta (1968), ou ainda a música “Canción con todos”, de Armando Tejada Gomez (1969). A relação entre as línguas atravessa esse projeto, fazendo ver que foram amarrados pela América Latina não só pacotes econômicos, políticos, culturais, musicais, como também linguísticos.
A relação entre o espanhol e o português na canção engajada latino-americana
Em meu gesto de leitura, podem ser distinguidos quatro modos de relação entre o espanhol e o português na canção engajada latino-americana. Essas canções podem ser encontradas com uma busca na internet por título e autor.
- Versão em espanhol de canção em português: A canção “Caminando” (G. Vandré, 1969) pode ter sido a primeira canção engajada em português a ter uma versão em espanhol. Convém mencionar também as versões em espanhol de músicas de Chico Buarque (“Construcción” e “Diós le pague”) e Edu Lobo (“Upa Negrito” e “Yo Vivo en un Tiempo de Guerra”), no álbum Trópicos (D. Viglietti, 1973). Daniel Viglietti, compositor uruguaio, seria responsável por versões em espanhol de outras canções engajadas de Chico Buarque ao longo da década de 1980.
- Canção em/com espanhol por cantor brasileiro (autoral): A primeira canção engajada composta por brasileiro em espanhol foi “Desacordonar” (G. Vandré, 1969). Há ainda “Canto Americano” (S. Ricardo, 1973). Duas canções engajadas brasileiras com pequenos trechos em espanhol são “Canto latino” (M. Nascimento, 1970) e “San Vicente” (M. Nascimento/F. Brant, 1972).
- Canção em espanhol por brasileiros (regravação): A primeira regravação de música engajada em espanhol por cantor brasileiro foi, aparentemente, a de “Los Hermanos” (Atahualpa Yupanqui), por Elis Regina (1976). Em 1978, Chico Buarque e Milton Nascimento cantariam juntos uma canção do cubano Pablo Milanés, chamada “Canción por la Unidad Latinoamericana” (1975); há trechos em espanhol, como o original, e outros traduzidos. Em 1980, Milton Nascimento e Mercedes Sosa cantam juntos, em espanhol, uma canção do compositor cubano Sílvio Rodríguez chamada “Sueño con Serpientes” (1974).
- Canção em português por não-brasileiro (regravação): A cantora Mercedes Sosa gravaria, em 1977, as canções “San Vicente” (M. Nascimento/F. Brant, 1972) e “O cio da terra” (M. Nascimento/Chico Buarque, 1977). Convém mencionar que Mercedes Sosa e Milton Nascimento cantariam “San Vicente” juntos, em 1987.
Em todas essas canções, a integração regional aparece não só como tema a ser cantado, mas na antecipação de certa relação positiva do público para com o code-switch, a tradução/versão, a bilingualidade português/espanhol. Conforme a crítica literária Walnice Nogueira Galvão (1968), o público da canção engajada brasileira eram os universitários e seus adjacentes, em geral, os intelectuais. Além da circulação restrita, Walnice critica o efeito de escapismo e de consolação que a canção causava no ouvinte: “vem, vamos embora” (G. Vandré), ou ainda “la paloma volará” (V. Jara). Vamos embora de onde para onde, quem vai, quando? Quando a pomba (a paz) voará, para onde, o que a fará voar? Porém, acredito que outros efeitos de sentido são possíveis, efeitos que podem ser observados em comentários recentes a publicações dessas canções em plataformas de vídeo na internet.
Após uma comparação entre o número de visualização das músicas que estão na lista acima, chegou-se aos seguintes resultados (busca realizada em setembro de 2025). Em terceiro lugar no número de visualizações, está “Construcción”, a versão em espanhol da canção de Chico Buarque elaborada por Daniel Viglietti. O vídeo da música encontra-se disponibilizado há 12 anos e atingiu o número de 242 mil visualizações. Em segundo lugar, está um vídeo da música “San Vicente”, cantada por Milton Nascimento, disponibilizado há 17 anos, contando com 701 mil visualizações. Em primeiro lugar, está um vídeo do dueto entre Mercedes Sosa e Milton Nascimento, cantando “San Vicente”, disponibilizado há 12 anos, tendo atingido 2 milhões de visualizações. Esse último vídeo é de uma performance dos cantores ao vivo, em uma edição do programa “Chico e Caetano”, exibido pela TV Globo entre abril e dezembro de 1986. Entre os comentários de usuários na publicação em vídeo da apresentação, gostaria de mencionar alguns interessantes.
@veronicaestaracio7225 [há 5 anos]
Viva Sudamérica hermandad latina por siempre… imposible olvidar […]
@nicolasvega8570 [há 8 anos]
Quiero aprender a hablar Portugués!!! Qué época, que músicos! […]
@buzios lover [há 11 anos]
Mercedes Sosa …. con ella y Milton aprendi mi primera cancion en castellano …. VOLVER A LOS 17
@abigail8890 [há 2 anos]
las dos voces de Latinoamérica que estremecen el cuerpo y revolucionan el alma
@arielalejandrosalgado4695 [há 7 meses]
Quien escucha esta preciosura hoy 12/12/2024…..amo esta musica …me encanta Brazil.y me gustaría aprender portugués.jaja
Em 1986, o Brasil e a Argentina assinaram a Ata para a Integração Brasil-Argentina e criaram o programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE). Em 1988, os dois países assinaram o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, que atraiu a atenção de Uruguai e Paraguai, desembocando no surgimento do Mercosul em 1991 (cf. Neves, 2016). Já em 1987, a compositora argentina Mercedes Sosa e Milton Nascimento cantariam “San Vicente”, em um programa de televisão. Enfim, a publicação de um vídeo da apresentação, desde 2013, tem recebido comentários como estes que são mostrados acima.
Esses comentários permitem reconhecer a presença de línguas diferentes entre o público, na medida em que os consumidores (e avaliadores, comentadores) da produção cultural falam português (em comentários que não foram citados aqui) e espanhol. Permitem também compreender uma relação entre a exaltação da música, do tema da música (o acordar de um sonho estranho, americano) e a exaltação da língua em que a música é cantada e das línguas faladas pelos cantores. Certamente, o dueto do cantor brasileiro e da cantora argentina auxiliou na circulação a um público (consumidores) multilíngue, na medida em que pode fazer com que a música seja ouvida pelos fãs dos países de origem de ambos os cantores, onde as línguas portuguesa e espanhola são as línguas nacionais. Teria a aproximação comercial entre os países da América Latina também favorecido a ampliação do público?
De todo modo, a canção “San Vicente” é uma canção majoritariamente em português, salvo o topônimo do título que reaparece na letra. Esse topônimo demarca a presença do espanhol na letra, o encontro entre as línguas, para além da relação de parceria entre cantores com suas respectivas línguas nativas. O topônimo se refere a um nome de cidade fictícia: uma cidade onde se passa um sonho estranho, do qual se acorda. Uma cidade que reúne uma gente em que dentro bate um “coração americano”, uma cidade com “um sabor de vidro e corte” e “um sabor de chocolate”, como se lê na epígrafe ao artigo. Para além de opor o doce à dor da repressão ditatorial (pesadelo de que se buscava acordar), o “sabor de chocolate” pode se referir à produção agrária latino-americana de cacau, ou seja, faz circular sentidos sobre a economia latino-americana, historicamente restrita à sua produtiva mas pouco diversificada atividade de exportação, conforme analisava a Cepal.
Por fim, o encontro entre as línguas portuguesa e espanhola na canção engajada poderia ser descrito como um componente da integração regional latino-americana. No plano literário, joga-se com os sentidos de uma história comum, de um mesmo “coração americano”, de um mesmo espaço em “San Vicente”; no plano da circulação e da recepção da obra, o público da canção engajada não se caracteriza como monolíngue. Esse efeito de uma história comum, de um público consumidor lusófono e hispanófono, pode compor a busca pelo fortalecimento de uma relação econômica do Brasil com a América Latina, enquanto um eixo cultural e comercial de tal relação.
À guisa de conclusão, gostaria de tecer alguns questionamentos: como os Estados têm facilitado o aprendizado das línguas da região entre seus cidadãos e/ou fortalecido a integração regional, conforme apregoam os comentários dos consumidores/comentadores das músicas citados acima? Como a canção engajada têm visibilizado outras línguas latino-americanas, para além das línguas nacionais portuguesa e espanhola? Como a circulação de sentidos sobre uma história comum interfere na relação do sujeito com o multilinguismo?
Agradecimentos
Este trabalho não seria possível sem meu encontro inesperado com uma migrante chilena no Brasil e sua família, com a qual eu me envolvi a partir de 2013 e pela qual tenho muito apreço. Essa amiga chegou ao Brasil na década de 1980, com sua mãe e irmãos, e me apresentou muito mais que a canção engajada latino-americana.
Referências
ABREU, Alzira Alves de. Verbete ISEB. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc. Acesso em: 15 jul. 2025.
BIELSHOWSKY, Ricardo. Cinquenta anos de pensamento na CEPAL: uma resenha. In: Cinquenta anos de pensamento na Cepal. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p. 13-67. Disponível em: https://bit.ly/3BeNcPt. Acesso em: 10 jun. 2022
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. Disponível em: https://bit.ly/3OIKcyc. Acesso em: 6 jun. 2022.
CNV (Comissão Nacional da Verdade). Operação Condor, s.d. Disponível em: https://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/2-uncategorised/417-operacao-condor-e-a-ditadura-no-brasil-analise-de-documentos-desclassificados. Acesso em: 15 jul. 2025.
GALVÃO, Walnice Nogueira. MMPB: uma análise ideológica. 1968. Disponível em: https://www.novacultura.info/post/2023/07/28/mmpb-uma-analise-ideologica. Acesso em: 15 jul. 2025.
NEVES, Luiz Augusto de Castro. Por um novo caminho para o Mercosul. Cebri, ed. especial, Rio de Janeiro, 18 jul. 2016 (online). Disponível em: https://cebri.org/media/documentos/arquivos/CEBRIEdEspecialPorUmNovoCaminh.pdf. Acesso em: 15 jul. 2025.

Kaya Araújo Pereira
Graduada em Letras-Português pela Universidade de São Paulo. Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutoranda em Estudos da Linguagem pela mesma instituição. Docente de Língua Portuguesa na Prefeitura de Saquarema (RJ).