Vozes do Multilinguismo: Dra. Débora Borsatti – IFSul Venâncio Aires/RS

Por Leonardo Alves

O multilinguismo é um fenômeno complexo, atravessado por dinâmicas históricas, políticas e sociais que determinam o status, a circulação e a valorização das línguas em diferentes contextos. Nesta série de entrevistas, membros do GT Geopolíticas do Multilinguismo se revezam para dialogar com especialistas de diversas áreas, explorando as interseções do multilinguismo com tradução, direitos linguísticos, mediação intercultural, migrações, internacionalização, informação e comunicação, ensino de línguas, entre outros temas.

O objetivo é reunir diferentes perspectivas sobre as políticas linguísticas, os desafios da preservação e revitalização de línguas, as relações entre idiomas em espaços de fronteira e a influência de fatores geopolíticos na organização do multilinguismo. A partir dessas conversas, buscamos ampliar o debate e fomentar reflexões críticas sobre os modos como as línguas circulam e se transformam no mundo contemporâneo.

Nesta edição, entrevistamos Débora Borsatti, Doutora e Mestra em Letras pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com doutorado-sanduíche na Universidade de Pittsburgh (EUA). Graduada em Psicologia (UNISC) e em Letras Português/Inglês (Unicesumar), é professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSUL), Campus Venâncio Aires, atuando na área de Letras. Possui especialização em Neurociência, Psicologia Positiva e Mindfulness pela PUCPR. Desenvolve pesquisas sobre o ensino e aprendizagem de Inglês como Língua Adicional, com ênfase nos processos socioemocionais, cognitivos e neuronais envolvidos na aprendizagem e na prática da leitura.

Fonte: GT Geopolíticas do Multilinguismo.

Minha formação inicial foi em Psicologia, mas a paixão pela aprendizagem de línguas e estudos linguísticos me levou à graduação em Letras, seguida pelo mestrado e doutorado na área. Durante o doutorado, fui contemplada com uma bolsa “Sanduíche” da Capes e realizei parte da pesquisa na Universidade de Pittsburgh (EUA), no Learning Research and Development Center (LRDC), sob orientação do professor Charles Perfetti, onde não apenas aprofundei os conhecimentos sobre leitura e cognição, mas ampliei o olhar para a neurociência.

Esse contato despertou meu interesse pelos efeitos da leitura no cérebro. Na minha prática docente no IFSUL, percebo o impacto negativo do uso excessivo de telas e da diminuição do hábito da leitura no aprendizado dos estudantes. Por isso, em parceria com colegas da área de Letras, estamos desenvolvendo um projeto de incentivo à leitura no campus. Paralelamente, atuo em outro projeto que aborda a “felicidade no ambiente escolar”, com base nos estudos sobre Psicologia Positiva e sobre Inteligência Emocional. Minha formação nessa área foi complementada por uma especialização em Neurociência, Psicologia Positiva e Mindfulness pela PUC-PR (2022).

Acredito que a leitura, especialmente a literária, é uma poderosa ferramenta de autoconhecimento e desenvolvimento de habilidades humanas essenciais como empatia, imaginação e criatividade, competências que exigem um esforço para serem cultivadas neste um mundo cada vez mais digitalizado em que estamos vivendo. Assim, vejo que o desenvolvimento da linguagem através da leitura representa um fio condutor da minha trajetória acadêmica e dos projetos que venho desenvolvendo na educação.

A prática da leitura vem diminuindo no Brasil. Diversas pesquisas apontam dados preocupantes nesse âmbito. Por exemplo, o relatório Retratos da Leitura no Brasil de 2024 revelou que o número de leitores no país voltou a cair, especialmente entre adolescentes e jovens adultos. Segundo o relatório, apenas 48% dos brasileiros declararam ter lido, por vontade própria, pelo menos um livro nos últimos três meses, representando uma queda significativa em relação aos 52% registrados em 2019. Entre os principais motivos apontados para não ler estão a falta de tempo, desinteresse e dificuldades de concentração.

Dentre outros fatores apontados para o declínio da leitura estão a falta de acesso a livros de qualidade, a ausência de políticas públicas consistentes de fomento à leitura, a sobrecarga de trabalho e estudo, além da carência de mediação leitora qualificada nos espaços escolares. É importante ressaltar que, embora o incentivo familiar tenha forte influência no desenvolvimento do hábito da leitura, apenas uma minoria das crianças brasileiras cresce em lares onde a leitura é uma prática constante.

O conhecimento desses dados alarmantes, associado aos estudos acadêmicos sobre o tema da leitura, despertou a vontade compartilhar essas informações de forma simples e através de uma linguagem de acesso a qualquer pessoa que não esteja no universo acadêmico, para ressaltar a importância da atividade de leitura e o impacto que a capacidade de ler representa não apenas individualmente, mas para a humanidade como um todo. Diante disso, meu objetivo com o perfil é conscientizar as pessoas tanto sobre os diversos benefícios da prática da leitura profunda como sobre os perigos de abandonarmos essa atividade em detrimento da leitura superficial e fragmentada que os meios digitais nos fornecem.

Do ponto de vista cognitivo, a leitura estimula aspectos fundamentais para as tarefas executivas como atenção, memória, raciocínio, linguagem e pensamento crítico. Ela amplia o vocabulário, favorece a construção de conhecimentos e promove a capacidade de compreender e interpretar o mundo de maneira mais complexa e refinada.

No aspecto emocional, a leitura permite que o leitor entre em contato com diferentes perspectivas, emoções e experiências humanas, desenvolvendo empatia e sensibilidade. Além disso, pode ser uma forma de acolhimento, autoconhecimento e expressão subjetiva. Em contextos educacionais, a leitura também funciona como uma ponte para a inclusão, autonomia e protagonismo dos sujeitos na construção de suas trajetórias.

Do ponto de vista da neurociência, a leitura tem efeitos muito significativos sobre o funcionamento do nosso cérebro. Ao lermos, ativamos simultaneamente diversas áreas cerebrais, desde as regiões visuais que reconhecem as letras e palavras até as áreas responsáveis pela linguagem, memória, emoção e pensamento crítico. É uma atividade altamente integrada e complexa.

Em sua obra Proust e o Lula: A história e a ciência do cérebro que lê, Maryanne Wolf explica que o cérebro humano não foi biologicamente programado para a leitura, ao contrário da linguagem falada, que é inata. Por isso, ao aprender a ler, o cérebro precisa “reciclar” circuitos originalmente destinados a outras funções, como o reconhecimento visual e auditivo. Esse processo forma o que ela chama de “circuito de leitura”, um sistema altamente integrado que envolve regiões do lobo occipital (visão), temporal (linguagem) e frontal (interpretação, previsão, crítica).

Em outra perspectiva, Stanislas Dehaene, no livro Os neurônios da leitura, também descreve como a leitura modifica o cérebro de maneira estrutural. Ele introduz o conceito de “reciclagem neuronal”, que mostra como as áreas visuais do cérebro são adaptadas para reconhecer rapidamente símbolos gráficos (como letras e palavras) e conectá-los ao som e ao significado. Para ele, a leitura eficiente envolve a automação desses processos, o que libera recursos cognitivos para a compreensão mais profunda dos textos.

Além das mudanças estruturais, há efeitos cognitivos importantes: a leitura amplia a memória de trabalho, melhora a atenção sustentada e estimula a empatia, pois o leitor se coloca no lugar de outras pessoas, compreendendo emoções e perspectivas diversas. A leitura, portanto, não é apenas uma habilidade acadêmica; ela é uma atividade transformadora do ponto de vista neurológico, que contribui para o desenvolvimento integral do ser humano, envolvendo linguagem, pensamento e afetividade.

Um dos maiores mitos que ainda encontro com frequência, tanto na sala de aula quanto no imaginário social, é a ideia de que a leitura é uma habilidade que se adquire automaticamente com o tempo ou que basta “gostar de ler” para se tornar um bom leitor. Essa visão desconsidera a complexidade do processo de aprendizagem da leitura, que exige mediação, intencionalidade pedagógica e práticas constantes de letramento desde a infância. Outro equívoco bastante recorrente é reduzir a leitura à mera decodificação de palavras como se entender o conteúdo superficialmente já bastasse. Na verdade, compreender, interpretar, inferir e refletir criticamente sobre um texto são habilidades cognitivas e discursivas que precisam ser cultivadas ao longo do tempo, em um trabalho conjunto entre escola, família e sociedade.

Há também a crença de que algumas pessoas “não nasceram para ler”, uma ideia que reforça uma visão biologizante e limitadora da aprendizagem. A neurociência e a psicologia educacional têm mostrado que todos podem se tornar leitores competentes, desde que tenham acesso às estratégias certas e ao suporte adequado. Nesse contexto, é fundamental distinguir entre a leitura superficial, como a leitura apressada de redes sociais, e a leitura profunda, que exige concentração, empatia e análise crítica. Essa última é essencial para o desenvolvimento de competências cognitivas mais sofisticadas e para a construção de um pensamento mais reflexivo.

Por fim, outro mito comum é associar a leitura apenas a pessoas “intelectualmente superiores”. O hábito da leitura, na verdade, é o que ajuda a expandir o raciocínio, a imaginação e a inteligência emocional, e não o contrário. Nesse processo, o exemplo familiar tem um peso enorme: o Retratos da Leitura no Brasil 2024 apontou que a mãe é o principal modelo de leitura para as crianças, especialmente por ser quem mais é vista lendo dentro de casa. Isso reforça como o ambiente e os modelos de leitura são determinantes para o desenvolvimento do gosto e do hábito de ler.

Essa é uma tarefa que envolve desafios e responsabilidades importantes, especialmente quando tratamos de temas como leitura, cognição e saúde mental. Um dos principais desafios é a necessidade de traduzir conteúdos complexos em uma linguagem acessível, sem perder o rigor científico. É um equilíbrio delicado: simplificar sem simplificar demais, mantendo a profundidade e evitando distorções.

Outro ponto crítico é o combate à desinformação. As redes sociais estão repletas de discursos superficiais ou pseudocientíficos sobre esses temas, o que exige uma atuação ética, crítica e fundamentada por parte de quem divulga ciência. Quando falamos de leitura, por exemplo, é comum encontrar ideias equivocadas sobre métodos “milagrosos” de alfabetização ou sobre “tipos de cérebro para ler”. Em saúde mental, os riscos são ainda maiores, pois há uma banalização de diagnósticos e uma medicalização do sofrimento que precisam ser discutidas com responsabilidade.

Por outro lado, vejo a divulgação científica como uma oportunidade valiosa de democratizar o acesso ao conhecimento, desnaturalizar mitos e promover o pensamento crítico. Compartilhar conteúdos baseados em evidências, que articulem ciência, educação e subjetividade, pode fortalecer o papel social da leitura e contribuir para uma compreensão mais ampla e humanizada da cognição e da saúde mental. Para isso, acredito que é fundamental manter o compromisso ético com as fontes, promover o diálogo com outros saberes e escutar as experiências do público com empatia e respeito.

Acredito que a divulgação científica e educacional precisa estar atenta às urgências do nosso tempo, e isso inclui escutar vozes plurais, enfrentar desigualdades e valorizar a leitura como um direito e uma prática de liberdade. Meu objetivo é que o perfil seja um espaço de troca e de incentivo a essa prática que vem diminuindo no nosso país.

Em termos literários, muitos livros marcaram a minha trajetória pessoal e profissional, porém, um livro que posso citar como uma grande influência acadêmica mais recente é “O cérebro no mundo digital: Os desafios da leitura na nossa era”, de Maryanne Wolf (2019). Foi depois de ler esse livro que eu comecei a pensar que deveria fazer algo no sentido de incentivar a prática da leitura, não apenas como leitora ou educadora, mas como alguém comprometida com o futuro da humanidade em um mundo cada vez mais digitalizado e acelerado.

A forma como Wolf associa os dados da neurociência com obras literárias em uma abordagem que une sensibilidade pedagógica e ética profissional me tocou profundamente. Ela mostra como as mudanças tecnológicas estão transformando o nosso modo de ler, pensar e sentir e alerta para os riscos de perdermos as habilidades cognitivas e empáticas associadas à leitura profunda. Ao mesmo tempo, a autora não é alarmista, pois aponta caminhos possíveis, baseados em práticas educativas mais conscientes e na valorização de uma leitura que forme sujeitos críticos, reflexivos e éticos.

Esse livro foi um ponto de virada na minha trajetória, porque me fez perceber que a defesa da leitura vai muito além do gosto pessoal ou da prática docente. É uma questão social, política e afetiva. Desde então, passei a orientar meus estudos e pesquisas para um olhar mais atento às transformações do presente, sem abrir mão da esperança de que é possível cultivar e incentivar, ainda hoje, o hábito da leitura profunda. Isso inclui a ideia de criar o perfil @leituranamente para compartilhar o que venho construindo ao longo da minha trajetória pessoal e acadêmica que reúne saberes de Letras, Psicologia e Neurociência de maneira integrada, conectando teoria e prática, ciência e afetividade, valorizando a leitura como uma ferramenta de transformação pessoal e social.

Leonardo Alves

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina na linha de pesquisa de Linguagem, Política e Sociedade. Graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Santa Cruz do Sul.

Gostou de conteúdo? Compartilhe!

Outras publicações

Acompanhe nossos outros canais

GeoMultLing

A GeoMultLing é um grupo de trabalho dedicado a promover e disseminar pesquisas nos sete eixos da Cátedra UNESCO em Políticas Linguísticas para o Multilinguismo, explorando áreas cruciais como educação multilíngue, direitos linguísticos, multilinguismo no ciberespaço, políticas linguísticas e geopolítica linguística.

Direitos Autorais @ 2025 – Universidade Federal de Santa Catarina